Não só de Mandela vive a África do Sul
Desmond Tutu é o sul-africano mais conhecido do planeta (Nelson Mandela é santo, não conta). Sua figura um tanto histriônica, do velhinho vestido de roxo, correu o mundo.
Foi um gigante na derrota do apartheid. Sempre esteve abraçado às melhores causas. Prêmio Nobel da Paz em 1984, foi o primeiro a denunciar a maluquice do governo sul-africano de negar a existência de uma epidemia de Aids (aliás, alguns até negavam que Aids existisse…). Não teve medo de trombar com Robert Mugabe.
Quando foi criada uma comissão para investigar crimes cometidos durante o apartheid, com o objetivo exclusivo de revelar a verdade e oferecer conforto às vítimas e suas famílias, Tutu foi a escolha natural. O modelo foi copiado em dezenas de países recém-saídos de períodos traumáticos. No Brasil, chegou a ser cogitado, no início do ano.
Tutu me deu uma entrevista por email, que você pode ler a seguir. Foi uma canseira. Em março pedi por telefone ou pessoalmente. Nada feito. Mandei então 15 perguntas, ignoradas.
Há duas semanas liguei de novo para a secretária dele. Ela lembrou das perguntas, mas disse que 15 eram demais. “Posso ver se ele responde oito”. No final, respondeu 6 e ignorou as outras 9. Pelo menos a assessora jura de pés juntos que foi ele mesmo quem respondeu, não um ghost-writer.
Tá valendo. Desmond Tutu é uma dessas figuras que vale sempre ler e ouvir. Ei-la:
A Copa do Mundo pode ajudar a melhorar as relações raciais na África do Sul?
Desmond Tutu – O torneio deu aos sul-africanos um espírito de unidade e nos lembra que juntos somos uma força a ser reconhecida. Eu sempre me maravilhei com a linguagem universal do futebol, um esporte que não precisa de tradução. Se conseguimos ficar unidos pela Copa do Mundo, conseguiremos ficar unidos em todos os desafios que encontraremos. Não é preciso ter a mesma opinião sobre tudo, mas podemos discordar amigavelmente, respeitando a dignidade do outro.
O futebol pode fazer as pessoas sentir-se sul-africanos em primeiro lugar, deixando a identidade racial em segundo plano?
Tutu – O esporte tem a habilidade de unir as pessoas, cortando barreiras de classe, raça e origem. Eu tenho dito que não é possível viver apenas do pão. Há coisas que levantam o espírito. Você precisa desses momentos na vida que lhe dão uma visão do que você pode ser. A Copa do Mundo é um grande feito não apenas para a África do Sul, mas para todo o continente africano. Durante esse mês, o foco do mundo estará aqui. Conquistar o direito de sediar a Copa não diz respeito apenas a futebol. Diz respeito a nós vencermos, nos deu uma injeção de ânimo. Havia muitas dúvidas se estaríamos prontos e seríamos capazes de sediar esse torneio.
Por que ainda é tão difícil ver brancos e negros se misturando socialmente pelas ruas da África do Sul?
Tutu – Precisamos nos lembrar sempre que somos feitos para sermos interdependentes, porque ninguém é inteiramente autosuficiente. Você só precisa ir aos estádios para ver o elemento mágico do futebol. Galvaniza negros e brancos de uma forma excitante. Apenas duas semanas atrás, o Soweto sediou uma partida de rúgbi [esporte de preferência dos brancos] entre os Blue Bulls de Pretoria e os Stormers da Cidade do Cabo. Foi um estrondoso sucesso que viu negros e brancos misturando-se socialmente, comendo e bebendo juntos e se divertindo. Para alguns brancos, era a primeira visita a Soweto sem se preocupar com a segurança. E sabe o quê? O céu não desabou, manteve-se firmemente no lugar. Estamos recebendo uma oportunidade maravilhosa. Nunca vi tantas pessoas mostrando nossa bandeira em seus carros e em todo lugar possível.
Desde o fim do apartheid, a desigualdade de renda aumentou. A violência às vezes parece fora de controle. As mudanças sociais estão ocorrendo devagar demais?
Tutu – De um certo modo, a transformação social parece que está demorando demais. Temos problemas demais, não há questão quanto a isso. Mas você também deve notar que obtivemos nossa liberdade apenas há 16 anos, após décadas cruéis de apartheid. Estamos falando da sistemática opressão de gerações, algo que compreensivelmente não pode ser revertido num curto período. Isso não significa tolerar corrupção, enriquecimento pessoal, clientelismo, más decisões quanto a Aids e outros problemas que afligem nossa nação. A pobreza e o desemprego continuam a nos assombrar.
No Brasil, chegou-se a discutir a formação de uma Comissão de Verdade e Reconciliação, para investigar o regime militar. Com base em sua experiência, o sr. diria que esse instrumento funciona?
Tutu – A comissão sul-africana é considerada um modelo inovador de construir paz e justiça. A força do processo esteve na participação pública. Uma característica importante foi a abertura, a transparência. As audiências públicas asseguraram que os sul-africanos ficassem sabendo das atrocidades cometidas durante os anos do apartheid. A comissão foi confrontada por um número de desafios, uma vez que não foi aceita por todas as partes do conflito. Os altos escalões militares não cooperaram. Políticos importantes do antigo governo e líderes do aparato de segurança tampouco. No caso dos movimentos de libertação [como o CNA], argumentaram que, dado que tinham conduzido uma “guerra justa”, não precisariam pedir anistia, uma vez que suas ações não constituíam graves violações de direitos humanos. Foi preciso haver considerável convencimento para que eles participassem. A magnanimidade mostrada por algumas pessoas foi incrível. Recusaram a possibilidade de vingança e abraçaram perdão e reconciliação. Creio que, sem esse processo, nosso país teria experimentado conflito social inimaginável.
O sr. ganhou as manchetes recentemente, participando de um estudo do genoma por pesquisadores norte-americanos. Por que fez isso e o que queria p
rovar?
rovar?
Tutu – Estou feliz pela oportunidade de ter participado do projeto de sequenciamento do genoma, uma vez que ele pode descobrir se alguém corre risco de alguma doença genética. Eu lembro de uma coisa ridícula quando me deram o documento de identidade durante o apartheid. Minha nacionalidade era “indeterminada no momento”. Isso apesar do fato de que meus pais nasceram na África do Sul. O teste revelou que embora eu tenha tido tuberculose e câncer, não havia doenças geneticamente comunicáveis. Isso me deu imenso alívio, e ainda mais para meus filhos. Acredito que informações genéticas são importantes para companhias farmacêuticas na preparação de drogas. Devemos sempre rezar para que essas informações vitais sejam usadas para coisas boas e não más.
Fonte: Pé na África
escrito pelo jornalista Fábio Zanini
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